Tá ficando banal meter bomba em hospital, mandar míssil em ambulância, mandar pras cucuias escolas geridas pela UNRWA. E tá ficando banal contar os cadáveres de crianças que morrem como “efeito colateral” e como se 5.000 fosse é pouco. É 2023 e o sionismo pratica atrocidades chocantes em Gaza e, após quase 50 dias de carnificina, atônitos e revoltados, somos de novo interpelados pelo enigma da violência extrema e seus vínculos com o sagrado. Somos de novo afundados num pântano de sangue, numa catarata de injustiças, que fazem os palestinos padecerem com uma crise humanitária sem precedentes desde 1948, e o pensamento é requirido a refletir: de onde surgem, como se fortalecem, o que comem estas ideologias que pretendem convencer grupos de seu status enquanto superiores, os Supremos, os destinados a dominar?
Hannah Arendt forjou um dos conceitos mais poderosos do pensamento crítico no século 20, que se recusa a sair de moda, e que vem não apenas conservando uma <“tenebrosa atualidade”> como também nos convoca a atualizá-lo. Precisamos falar, de novo, da danada: a “banalidade do mal”, que também pôde ser chamada de boçalidade do mal em sua encarnação na extrema-direita brasileira (o Bolsonarismo é um fascismo boçal, sem nem mesmo o cuidado da hipocrisia – o autoritarismo histriônico conduzindo a uma necropolítica ecocida e genocida). No caso do Estado de Israel, este novo Estado-Nação proclamado pela ONU em 1948 após o encerramento do Mandato Britânico, esta criança-problema do aftermath da Segunda Guerra Mundial, a banalidade do mal hoje manifesta aquelas tintas que já tinha ganhado fortemente em outro aftermath – o do 11 de Setembro de 2001.
A nova banalidade do mal é assim: os Senhores da Guerra, os reis da retórica warmongering, atacam também na frente da propaganda, violentamente armados de fake news. O genocídio deles inclui a desinformação – ela está no DNA do sistema de mortandade que eles dominam. Eles praticam atrocidades no enclave enquanto mentem na mídia que se presta a isto – é bem paga para fazê-lo! – que são os mocinhos, os Rambos do Bem, a Gente Direita de Deus, controlando esta peste do terrorismo. Matando ratos.
A destruição generalizada do sistema de saúde e dos prédios residenciais do território onde 2 milhões e 200 mil pessoas tentam sobreviver com dignidade, enquanto esta lhes é brutalmente negada a décadas, é construída como “auto-defesa” perante o terrorismo.
Gaza inteira é transformada em zona de sacrifício, e passa a vigorar um vale-tudo na caçada aos jihadistas (Netanyahu os chamou de “os novos nazistas”… e ele é o quê? O Espírito Santo que higienizará o mundo desta praga através de uma Solução Final Para o Problema Palestina?). Na Cruzada bélica para o extermínio deste demonizado “terrorista”, vale tudo, inclusive a mentira – matar 200 pessoas dentro de um hospital e depois dizer: os jihadistas é que erraram a mira. Vocês sabem daquela: a primeira vítima da guerra, the first casualty of war, é a verdade. Ou quem busca revelá-la, comunicá-la, na autenticidade da realidade vivida-reportada. Matar dúzias de jornalistas é “auto-defesa” também, heil Israel?
É uma guerra de Israel contra a Verdade, e está dando certo: também pudera, fica fácil assassinar a verdade quando quase nenhuma corporação jornalística do planeta sente-se segura para botar correspondentes e repórteres nos territórios palestinos. Tá ficando banal, também, para as Forças Armadas de Israel assassinarem jornalistas – o que só torna a Al Jazeera mais heróica, e um dos veículos de comunicação que se alça de fato a uma dimensão histórica crucial neste momento.
A banalização do mal tem a ver com a desumanização do outro e com a demissão do pensamento (a irreflexão ou thoughtlessness de Arendt). Desumanizado por este viés fascista, o “terrorista” é visto como matável, e o território onde ele se esconde também passa a ser feito de matáveis. É construído o palestino, por este viés xenófobo, racista, anti-alteridade, autoritário, como Outro-monstro, peste-a-extirpar. E qualquer atrocidade que fizermos contra ele, ou contra o território de onde ele surgiu, bem… os terroristas e todos os seus parentes, filhos e médicos, fizeram todos por merecer.
Israel S.A., em prol da tribo eleita por Jeová, não está massacrando seres humanos, ah não!… estão apenas operando pest control, com a benção dos U.S.A., United States of Aggression (sobretudo de seu Complexo Militar Industrial).
O país onde a Liberdade é uma estátua vende muita arma para o país que “auto-defende-se” contra o terrorismo usando como método a morte em massa de crianças e a aniquilação de hospitais. É um descalabro também a imposição da morte em messa pela fome e pela sede. Os métodos de matar de que os sionistas dispõe são muitos, e o conselho dos EUA, da Grã Bretanha, de boa parte da União Européia, não é: “pare, Israel, de matar indiscriminadamente, de colher cadáveres civis, de derramar sangue infantil”, não… os Civilizados querem conceder, com limites e parcimônia, um pouquinho de ajuda humanitária, too little, too late. Eles matam em massa com a delicadeza de depois enviarem um punhado de trucks em humanitarian aid, naquele esquema gota-a-gota. Estes gentlemen são fãs da trickle-down-economy, como vocês sabem…
A punição coletiva imposta à Gaza utiliza-se daquela já mofada, enjoativa retórica do Nós Contra Eles – Civilização Ocidental Democrática vs Demônios Islâmicos Monstruosamente Assassinos. É a Luz contra as trevas – no caso, a Luz das bombas contra as trevas de hospitais bombardeados que não tem combusível nem eletricidade (não tem nem mesmo mais parede, mais teto!), onde bebês prematuros são entregues à morte pois Israel não pratica misericórdia com infantes e não está no business da assistência humanitária, mas sim no das armas, dos drones, do spyware.
Desde a Nakba de 1948, a catastrófica migração forçada de mais de 700.000 pessoas, expulsas de seus lares para que o Estado de Israel pudesse ser fundado, não ocorria uma tão colossal tragédia nos territórios palestinos. Muitos analistas da geopolítica já falam numa segunda Nakba, em 2023, com as Forças Armadas de Israel transformando todo o norte de Gaza em uma wasteland inabitável, forçando um fluxo migratório de mais de 1 milhão de pessoas rumo ao Sul – onde os bombardeios incessantes parecem forçar novas evacuações. Tudo indica que o objetivo predileto dos poderes dominantes em Israel é de fato “empurrar” com brutalidade toda a população de Gaza para o deserto do Sinai. Só faltou combinar com os egípcios.
As ocorrências no Hospital Al-Shifa revelam que as forças de ocupação de Israel estão cometendo tantas atrocidades e crimes de guerra, proibidos tanto pela lei internacional quanto pelo bom senso moral mais elementar, que não nos permitem escapar à conclusão de que o sionismo, apoiado pelos EUA e pela Grã-Bretanha, decidiu erradicar os palestinos de Gaza. Os bebês prematuros que precisam de incubadoras e de respiradores artificiais certamente não representam risco para um dos exércitos mais bem equipados e financiados do mundo – então por que as forças israelenses fazem tudo para matá-los? Na manhã de 18 de Novembro de 2023, centenas de pessoas feridas, doentes, amputadas, junto com médicos e enfermeiras, foram obrigadas por uma gangue de homens armados a saírem a pé de Al-Shifa e se mandarem para o Sul num êxodo dos Fanonianos Damnés De La Terre. O que há no Sul? Refúgio? Paz? Não – mais bombardeio, mais sede, mais fome.
A cruzada ideológica atraves de boa parte da civilização judaico-cristã capitalista-industrial do assim chamado Ocidente vem tratando de desumanizar os palestinos para tornar mais aceitáveis as atrocidades cometidas pela aliança sionista-yankee em sua sanha genocida. No viés vesgo dos sionistas, os palestinos são descritos como bestas, como pestes – não são gente, são ratos ou monstros. Tudo indica que os crimes contra a humanidade que estão sendo cometidos trazem de volta a lembrança sinistra da Solução Final que o III Reich concebeu para o “problema judeu” – desta vez, os judeus sionistas parecem ter concebido uma Solução Final para o “problema palestino”. Depois do julgamento de Eichmann em Jerusalém, nos próximos anos precisamos de um tribunal para julgar Netanyahu e cúmplices em Ramallah.
Berenice Bento escreve: https://berenicebento.com/…/o-genocidio-palestino-e…/
Cena 1: Luto sem corpos?
“40 bebês são decapitados pelo Hamas”. Impossível não sentir uma corrente elétrica percorrer a espinha depois de ler esta notícia. Tentei encontrar mais informações. Nada. Poucas horas depois, escutei o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, repetindo as mesmas informações. Se produziu uma comoção global. Mas onde estão os pais dessas crianças? Onde estão os corpos? O mundo ocidental, como um rastilho de pólvora, entrou em luto imediatamente. Uma punição exemplar foi exigida. Aos poucos a história começou a girar. Diante da impossibilidade de seguir adiante com a narrativa, a jornalista que espalhou a notícia, pediu desculpas e reconheceu que não tinha visto nenhum corpo. Confiou em uma fonte israelense e não fez o necessário trabalho de investigação. Mesmo depois de toda a história ter sido negada, de Joe Baden afirmar que, de fato, não tinha visto nenhuma foto, o luto por crianças que não existiram continuou[i]. Se seguiu justificando o massacre à Gaza pelas almas de 40 crianças que não existiram. E aqui está a eficácia simbólica máxima de uma notícia que, embora mentirosa, torna-se verdade: produzir o luto sem corpos.
Estranhamente estamos diante de um tipo de ordem discursiva que não tem como função descrever a realidade ou contar uma história, mas criá-la, próxima àquilo que John Auster aponta sobre a potência de algumas palavras para criar realidades. Politicamente, estas crianças existiram e foram mortas por todos aqueles que conferiram veracidade à mentira. Foi o luto sem corpos de 40 crianças israelenses que segue justificando a morte de 2.400 crianças palestinas em Gaza, de um total de 8.100 (dados da OCHA, em 29/10). Depois de ter consumido à exaustão a informação, o trabalho de negação não terá o mesmo alcance. Uma realidade foi criada. E as crianças de Gaza? Matar 2.400 crianças palestinas e matar simbolicamente 40 crianças israelenses parece estar subsumido na expressão “Israel tem direito de se defender”. Estamos diante de um poder soberano de um Estado sem registro na história da humanidade.
Todo binarismo é reducionista e míope, mas um deles me parece captar o real de uma cisão profundamente sentida em muitos de nossos peitos e crânios: Eles contra Nós. Justamente pois eles cindem o mundo assim, e agem na psicose desta cisão, ela se torna sensível, a gente sente, o pensamento é levado a concluir: há sim opressores e oprimidos, há uma ruptura binária assim sim!
É claro que é burrice pregar que todas as pessoas possam ser divididas em dois grupões, é evidente que isto é uma super-simplificação, sei muito bem da crítica que alerta para generalizações indevidas e pede atenção ao peculiar e ao singular, mas ainda assim: nas vísceras, a sensação de eles contra nós. Amplificada socialmente por movimentos que falam sobre o capitalismo como esta doentia e insanizante estruturação econômico-política onde consagra-se o superpoderio do 1% contra os 99%. Uma minoria de Pessoas Muito Importantes, que pretendem ser os triunfadores, os vitoriosos da Humanidade, humankind’s cream of the crop, concentrando capitais e colecionando bombas atômicas, mísseis balísticos e bunkers de luxo, e do outro lado, numa planeta transformado em wasteland, nós, a maioria que resta e que eles tratam como resto.
Eles tem um conceito de vitória que sinto ser tão repulsivo que ele me empurra para longe desses horrendos vencedores. Eu fico imaginando qual é o “gosto da vitória” na boca de um filho da puta que matou 5.000 crianças enquanto pregava para o seu povo a velha ladainha do “somos o povo escolhido”. De Vitoriosos assim eu sinto é pena. Vitória assim… que vexame. Quero estar abraçado aos que perdem e perdem, aos que a opressão oprime e oprime, pois eu não suportaria o gozo da vitória com que eles gozam em seu festim diabólico de sadismo bélico. O gozo perverso deles é com a hecatombe onde a Outridade perece. O gozo deles é na construção impiedosa do Domínio. Sou desde sempre avesso e cético a estas vitórias que aprendi a adjetivar assim: “de Pirro”.
Mas hoje não estou aqui para uma aula de filosofia sobre o ceticismo antigo e quem diacho seria Pirro, e o que este pensador nos diria das vitórias através de seu nome apelidados. Estou aqui querendo soltar os cachorros de minha revolta contra o discurso em prol da “vitória” do Sr. Netanyahu e de seus cúmplices no Gabinete de Guerra (ou seria Gabinete do Genocídio?). Ele encabeça o regime que em sua sanha genocida já ceifou a vida de mais de 5.000 crianças e adolescentes, mais de 3.000 mulheres, apenas no período entre 7 de Outubro e 21 de Novembro 2023. Não eram números mas vidas. As cifras fazem parecer como se fossem cadáveres anônimos, mas eram gente como a gente, carne e osso e sangue, feitos de medo e sonho, lembrança e revolta, desejo de dignidade e senso de justiça espezinhada.
O Sr. Netanyahu é pior que um serial killer. Enquanto ordenava esses massacres, e por eles se responsabilizava enquanto chefe-de-Estado, falava sempre em termos assim: não vai ter cessar-fogo até nossa vitória total sobre o Hamas. O discurso da erradição. Do controle de pestes. É uma enorme infelicidade para o judaísmo ter seus destino entremesclado com uma pessoa que eu ousaria chamar de tão satânica. Mas que em termos profanos, seculares, é simplesmente um péssimo ser humano pois sua substância ética está totalmente corroída pelo fanatismo, pela xenofobia, pelo ódio-ao-diferente; um judeu islamofóbico e sionista de carteirinha é assim capaz de mostrar-se tão cruel e perverso quanto um alemão anti-semita e nazista de carteirinha.
E por que não ousaríamos criticar uma pessoa poderosa, por ser ela judia, com medo de sermos xingados de anti-semitas? O anti-semitismo é uma generalização, e a crítica a um indivíduo não é totalizante: nem todo judeu é como Netanyahu, ainda que Netanyahu seja judeu. Netanyahu é sim um judeu perverso, maléfico até mesmo para uma certa honorável tradição de pensamento e criação artística que pessoas filiadas ao judaísmo criaram e nos legaram; do alto de minha admiração por Spinoza e por Lévinas, por Kafka e Bashevis Singer, por Benjamin e Hannah Arendt, por Freud e Marx, por Anne Frank e Martin Buber (etc. etc. etc), é que enxergo em Netanyahu a figura da baixeza, da perversidade, que me leva a sentir: mas que péssimo judeu. Isto só seria anti-semitismo se eu saltasse para a conclusão generalizante: se este judeu é tão canalha, então todos os judeus o são, o que é insensato e não referendo.
“Campo de concentração”: é nisto que o sionismo deseja transformar Gaza? As pessoas encarceradas no enclave não tem “o direito a ter direitos” (para emprestar uma expressão de Hannah Arendt)? Quantas mortes as Forças Armadas de Israel precisam causar até que sintam que foi o suficiente para aplacar sua fome de vingança e sua sede de sangue? Quantas leis internacionais serão tripudiadas e quantas crianças serão transformadas em cadáveres, amputados ou órfãos até que Israel possa decretar-se “vitorioso”?
Há alguma “vitória” possível para um movimento sócio-político como este, o sionismo de extrema-direita que utiliza o pretexto do combate ao Terror para ser ele mesmo o Terror elevado a enésima potência? O que significa “ganhar” quando se deixou no chão, entre os escombros e o sangue dos assassinados, qualquer integridade ética? Se para “vencer” você tranca 2 milhões e 200 mil pessoas num território e impede a entrada de água, comida, remédios e combustíveis, enquanto bombardeia pra todo lado, isto significa que você “venceu” o quê exatamente? Venceu os escrúpulos morais, venceu os valores éticos elementares, venceu o respeito antiquado à lei internacional?
O conceito de vitória deles é um dos sintomas mais graves da tal banalidade do mal, manifestando-se aqui não como ideia filosófica, como instrumento intelectual, mas no palco da história, encarnada no som e fúria, no sangue e na injustiça, que encharcam a terra que alguns ainda insistem em chamar de “sagrada”.
Eduardo Carli de Moraes
Amsterdam
22 – 11 -2023
Para A Casa de Vidro – https://www.acasadevidro.com
PRODUÇÃO AUDIOVISUAL A CASA DE VIDRO:
SAIBA MAIS:
UNFPA, UNICEF and WHO Regional Directors call for immediate action to halt attacks on health care in Gaza – https://www.emro.who.int/media/news/unfpa-unicef-and-who-regional-directors-call-for-immediate-action-to-halt-attacks-on-health-care-in-gaza.html
Publicado em: 22/11/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia